quinta-feira, 27 de março de 2014

465 anos de Salvador e a visão de um Geógrafo sobre essa cidade

Professor Pedro Vasconcelos,
um especialista em cidades

Um dos responsáveis pela implantação do programa de Pós-Graduação em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social da UCSal e professor do curso de Mestrado, o geógrafo Pedro Vasconcelos encaminhou para a Edufba a segunda edição ampliada do livro “Salvador – transformações e permanências (1549-1999)”, com lançamento previsto para o segundo semestre. Obra referência para quem estuda as mudanças ocorridas na capital baiana ao longo dos séculos. Pernambucano, que se mudou para Salvador na década de 1970, Vasconcelos também é professor da Universidade Federal da Bahia, tem título de Mestre pela Université Catholique de Louvain, na Bélgica, de Doutor (Ph.D) em Geografia pela Université d’Ottawa, Canadá e Pós-Doutorado na Universidade de Paris IV-Sorbonne. Foi diretor-superintendente da Conder nos anos 70, que na época era Companhia de Desenvolvimento da Região Metropolitana. Nessa entrevista, Vasconcelos fala das transformações ocorridas em Salvador e de sua obra.

Quais as raízes dessa expansão urbana desordenada em Salvador?
É difícil sintetizar diante de tantas coisas. Para começar Salvador está situada numa ponta. A forma da cidade não é muito boa, tem até discussão se é uma península ou se é um cabo, muitos dizem que é um cabo grande. Mas veja, não é uma cidade como São Paulo, que conta com 360 graus para sua expansão. Estamos muito limitados e a topografia é complicadíssima. Você tem a opção da orla atlântica, no norte e, por outro lado, a saída está bloqueada pela orla da baía. A expansão é complicada. No passado a cidade era voltada para a baía de Todos os Santos. E foi crescendo pelas cumeadas. As cumeadas eram valorizadas e os vales desvalorizados. Com a abertura dos vales nos anos 70, com Antonio Carlos Magalhães na prefeitura, a cidade ficou de cabeça para baixo. Me lembro quando cheguei aqui, os vales eram vazios. Mas foram se valorizando. E a cidade se tornou, basicamente, apoiada no automóvel e no ônibus, abandonando o sistema de bondes que era muito eficiente. Com os bondes se podia ir até o Santo Antonio Além do Carmo. Passava na Rua Chile, ia até o Rio Vermelho, por cima e por baixo, Liberdade, etc. Enfim, os bondes foram desmontados. Outro fator inconveniente é que não temos uma boa ferrovia. Fortaleza, por exemplo, tem vários ramais que entram na cidade. Aqui só temos um, que entra na beira d’água, não entra por cima. Na BR-324 deveria ter uma ferrovia. Então, a expansão da cidade poderia ser por base ferroviária.

Isso aumenta os problemas de mobilidade urbana...
Quando eu cheguei aqui, nos anos 70, para trabalhar na Conder, propus a ideia de colocar uma ferrovia entre a Avenida Paralela e a BR-324 e o crescimento da Paralela poderia ser ordenado, um pouco como Curitiba, adensando em torno dessas vias. Mas deu-se prioridade ao transporte rodoviário. Expandiu-se o bairro de Mussurunga, com o Centro Administrativo no meio. Salvador é uma das cidades mais difíceis que conheço, não só pelos problemas citados, mas pela desigualdade social, pela grande quantidade de invasões. Em São Paulo, o problema lá são os loteamentos populares precários, na periferia, mas os loteamentos são capitalistas, você paga um lote e a cidade se expande. Aqui existem invasões nessa topografia, vão subindo escadinhas, batendo laje. Imagine as condições sanitárias.

O traçado do metrô de Salvador vai resolver a mobilidade da cidade?
É complicado. Você desce de Cosme de Farias para pegar o metrô e depois tem que subir de novo. É um projeto muito mal direcionado. Eu ainda peguei um estudo sobre transportes na década de 70 e a ideia era fazer essa espécie de anel ferroviário com três penetrações em Salvador, incluído a Avenida Juracy Magalhães, a partir de dados de origem e destino. Então, a ideia de um metrô é para substituir o automóvel. É preciso perguntar para onde a população está indo. É para a Lapa ou para o Iguatemi? Mas, depois podem remendar (o traçado).

Então não resolve?
Eu achava que deveria ser um metrô completo, como em Lisboa. Faço muito contraponto com Lisboa, que tem uma topografia muito parecida com a nossa, não é uma cidade do primeiro mundo e lá o metrô, através das estações, liga a cidade alta à cidade baixa, por escadas rolantes. Você tem na Cidade Baixa os ministérios e as pessoas trabalham na área central, a área central não morreu. Tem bondes modernos elétricos, você pode ir para praia de trem com ar condicionado. Você vai para todo o litoral norte (o que seria o nosso Paripe, Periperi) em direção a Estoril. O pessoal vai com barracas de praia no trem. É humilhante. Ou seja, uma cidade com uma população de 3 milhões de habitantes, mais ou menos igual a Salvador, mesma aglomeração, você vê? Tem bonde antigo, bonde moderno, ônibus comum, funiculares (plano inclinado) metrô e os trens atravessando o país inteiro, parando na cidade, articulado com o metrô. Mas isso custa caro. Ruim é que estamos num momento em que o governo do Estado é do mesmo partido da presidente da República, mas não recebe nem a metade do que deveria. No Rio você vê a diferença. Pernambuco não quero falar porque sou suspeito. Salvador concentra muitos recursos em relação ao interior, mas é visível que a cidade está se deteriorando.

Salvador está inchando...
Salvador não tem nenhum contraponto. Você vai a Recife, tem Jaboatão, Olinda, são cidades que Recife desdobrou em cima. Belo Horizonte tem Betim. Salvador é tudo aqui. Você vai em Camaçari, que é relativamente rica, mas qual é a população? São Francisco do Conde também, cheia de dinheiro com a refinaria, e qual a população? As pessoas vão lá e voltam. Não se conseguiu fixar essas pessoas por lá. Por exemplo, (o condomínio) Vilas é uma alternativa, em um município intermediário, você tem um local agradável para se morar, que segurou alguma classe média, empresários. Mas de um modo geral era a Pituba que respondia por isso. Oferecendo ônibus subsidiado, nenhum operário quer ficar em Camaçari. Ele vai querer moram onde? Os filhos vão estudar onde? Então, Salvador virou uma cidade dormitório sem ganhar nada em troca. Está numa situação difícil, tem recursos baixos, tem uma diferença social muito grande, um relevo complicadíssimo. É um “abacaxi” para qualquer prefeito. E pior é que não tem, como em Minas, uma cidade que seja um contraponto a Salvador. Era para Vitória da Conquista, Barreiras, terem universidades grandes, como Uberlândia, Juiz de Fora, em Minas, onde a coisa é mais equilibrada.

Enquanto isso o interior é esquecido...
Aqui parece que o interior quase regrediu. E é difícil uma política de descentralização porque tudo está concentrado em Salvador. Vejas as ambulâncias que os prefeitos dos municípios do interior mandam diariamente para a capital. Milton Santos já dizia isso em relação à França. Tudo era concentrada em Paris, indústrias, universidades. Ele fazia esse paralelo, “Salvador e o deserto”. Não tem nada que faça um contrapeso a Salvador. O próprio eixo Ilhéus/Itabuna poderia fazer esse contraponto, mas o pessoal lá preferia morar no Rio ou Salvador (no apogeu do cacau). Acho que não houve uma política espacial. A gente tem um semiárido muito problemático e Salvador é muito atrativa. Mas agora está ficando o contrário, o trânsito complexo, a violência está muito grande, a gente sai de casa e não sabe se volta.

Os conceitos sobre as cidades de um modo geral e Salvador em particular estão na obra do senhor...
São dois momentos. O livro Dois séculos de pensamento sobre a cidade, foi o resultado do meu pós-doutorado. E, como eu dava aula em Arquitetura sobre teorias sobre a cidade, procurei estudar os textos originais, porque eu achava que aqui repete muito as “brigas de branco” (franceses contra alemães...). Aí pensei: vamos ver nos originais o que eles tratavam. Na época da primeira edição, 1999, não tinha internet. Então pensei em levar para a pós-graduação todo o material reunido, que interessa. Examinei mais de 200 textos que tratam das teorias sobre as cidades, que servem também para as minhas aulas na pós-graduação. O outro livro, Salvador – transformações e permanências (1549-1999) é a aplicação. É um estudo de como a cidade se desenvolveu, da fundação até 1999. Eu fiz a segunda edição agora, ampliada e atualizada. No livro faço uma espécie de periodização, baseado nos momentos em que houve cortes, mudanças e a partir de cada um desses momentos criei uma metodologia própria, em cada um deles trato do contexto histórico para o leitor se situar. Destaco os agentes fundamentais de cada período, a Igreja, o Estado, ou seja: os produtores da cidade. E, no final de cada capítulo, comparo as transformações espaciais que ocorreram por paróquia. Brotas, Santo Antonio, etc. Porque as paróquias antecederam os subsdistritos atuais. Você vai encontrar o papel do Estado, da Igreja, do que aconteceu na Penha durante cada período. Nessa segunda edição a sair, eu quase dupliquei os dados, na pesquisa que estou fazendo. A edição francesa, Salvador de Bahia (Brésil: Transformations et Permanences (1549-1999) saiu em e-book. Meus livros demoram um pouco de sair também porque sou perfeccionista. Não preciso de inimigos, não.

O tráfico de escravos foi uma das forças motrizes da economia baiana?
Sim. No início do século XIX, a economia agrícola estava decadente e os preços dos escravos eram altos. Uma das marcas dessa riqueza é o Corredor da Vitória, onde existiam mansões de traficantes como a casa que hoje é o museu (de arte do Estado) de José Cerqueira Lima, um dos grandes traficantes. O tráfico foi um agente fundamental da economia. Rendia tanto que (o historiador) Pedro Calmon exemplificou: com um navio de 200 escravos daria para comprar seis engenhos, na virada dos séculos XVIII/XIX.

Qual a marca mais evidente que Salvador tem do passado?
O ranço da escravidão. As diferenças sociais, o 'dar ordem'. As pessoas gritam, aqui, com os empregados, menino dá ordem. O peso de uma sociedade que não é igualitária, que não é democrática. Por exemplo, as pessoas (“importantes”) não querem entrar em fila, não querem estacionar no local adequado. É uma sociedade autoritária. Em São Paulo isso não ocorre. Por causa do peso dos emigrantes, que vieram com outra noção (de relações sociais). Aqui, em Salvador, não houve impacto da industrialização, da massa operária, do apito da fábrica, que é muito forte no ABC paulista, Porto Alegre e outras regiões. Então, a gente tem esse ranço do escravismo que é ruim para todos, dominantes e dominados. As relações clientelistas e o paternalismo estão presentes até hoje. Por exemplo, quando entrei na UFBA, nos anos 1980, algumas pessoas traziam empregados para trabalhar na Universidade, para fazer o seu mingau...”.

A pesquisa do senhor derruba vários mitos sobre a escravidão. Salvador é um caso à parte nas relações sociais durante aquele período?
Sim. Os mitos foram criados devido ao grande peso da escravidão na sociedade brasileira. Talvez devido à crueldade e à injustiça do sistema escravista. Contudo, ao analisar o censo de 1775 de duas importantes freguesias de Salvador, São Pedro e Penha, encontrei um quadro bem diferente da imagem que se tem. A análise dos dados mostra que não é possível conceber a existência de apenas duas categorias na sociedade daquele período, como as de senhor e de escravo, caracterizando-as como dominantes e dominados. A sociedade colonial urbana era bem mais complexa, pois nela conviviam brancos ricos, médios e pobres, inclusive numerosas mulheres chefes de família. Os libertos, pardos e pretos, também faziam parte da mesma sociedade colonial, tendo ocupações rentáveis. Muitos brancos eram pobres, não tinham escravos e trabalhavam, o que vai contra o outro mito da ociosidade dominante no período escravista.